PÚBLICO - 21.03. 2008
Sorry, imploram quatro
tablóides britânicos ao casal McCann. Também o Nouvel Observateur
lamentou a mágoa causada pela notícia de um alegado SMS de Sarkozy.
O director da Society
of Editors da Grã-Bretanha e o advogado Teixeira da Mota explicam o
significado destes gestos.
Entre o Verão de 2007 e
Fevereiro deste ano, os tablóides britânicos Daily Express, Daily
Star e as suas respectivas edições dominicais (Sunday Express e
Daily Star Sunday) fizeram várias alegações sobre Kate e Gerry
McCann, incluindo as de que o casal “vendeu” ou “matou” a sua
filha Madeleine, desaparecida a 3 de Maio de 2007, no Algarve.
A 6 de Março [de 2008],
o site nouvelobs.com noticiou que, oito dias antes de se casar com
Carla Bruni, o Presidente Nicolas Sarkozy enviou um SMS à sua
ex-mulher Cécilia Ciganer-Alberniz, dizendo-lhe, alegadamente, “se
voltares, cancelo tudo.”
[Em Março de 2008] todos
pediram desculpas. O grupo Express assumiu, na primeira página, o
carácter difamatório de mais de 100 artigos, aceitou desembolsar
uma indemnização equivalente a 697 mil euros e apagou já todo o
seu arquivo online sobre o caso Madeleine. Foi um acordo amigável
com os advogados dos McCann, ou uma “capitulação”, como
sublinhou, no Guardian, Roy Greenslade, professsor de Jornalismo na
Universidade de Londres, porque esta seria uma batalha perdida em
tribunal.
Quanto ao Nouvel
Observateur, depois de o seu director e co-fundador, Jean-Daniel, ter
considerado “um erro” a publicação da história do suposto SMS
de Sarko, também o autor do artigo na edição electrónica, Airy
Routier, enviou uma carta pessoal a Carla Bruni em que lamenta tê-la
“magoado”. Assim que recebeu esta
mensagem, a primeira-dama divulgou o seu conteúdo no diário Le
Monde e revelou que o marido retirou a acção judicial que interpôs
– um processo judicial inédito na V República, de um chefe de
Estado contra um órgão de informação.
Ao contrário dos jornais
britânicos, porém, Routier insiste na “autenticidade” da sua
notícia, ainda que a própria Cécilia tenha desmentido a recepção
do referido SMS. Num esclarecimento
publicado na sua edição de 20 de Março [de 2008], o Nouvel
Observateur reafirma que “esta confidência não deveria ter sido
publicada”, mas realça também a “boa-fé” do jornalista, que
se “mantém em funções”. Sugere ainda “um rápido e
necessário debate” sobre a lei de 1970 que rege as relações
entre vida pública e privada e que “está hoje em crise”.
Como se chegou aqui?
No caso britânico, Bob
Satchwell, director-executivo da Society of Editors, em Londres,
explicou-me, por e-mail, que um dos problemas cruciais no caso de
Madeleine McCann é “quase não ter factos”. “Sabemos que a menina
desapareceu do seu apartamento na praia da Luz e que os pais foram
considerados arguidos pelas autoridades portuguesas”, disse. “Além
disso, ao contrário do que acontece no Reino Unido, não houve
muitas conferências de imprensa ou explicações oficiais.”
“O segredo conduz
sempre à especulação”, observou Satchwell. “Isso prejudica a
credibilidade e a confiança em qualquer organização. Os media
britânicos estão habituados a uma relação mais aberta com os
investigadores e todo o sistema judicial é mais aberto.”
“O facto de os McCann
terem sido considerados suspeitos também é muito diferente do
sistema do Reino Unido”, referiu o antigo e premiado jornalista
Satchwell. “É um conceito difícil
de entender, e o sistema português tem sido difícil de explicar a
leitores, ouvintes e telespectadores na Grã-Bretanha. Duvido que a
maioria já o compreenda. Isso aumentou a especulação que rodeava a
história. Além disso, a imprensa britânica confiou demasiado nos
artigos que iam aparecendo nos media portugueses.”
Francisco Teixeira da
Mota, advogado do diário PÚBLICO, declarou-se impressionado com o
modo “especulativo e temerário” com que os jornais do grupo
Express, agora convictos da “inocência de Gerry e Kate” trataram
o caso Maddie. O segredo de justiça em
Portugal, agora mais atenuado, pode ser uma dificuldade na recolha de
informações, admite. “Muita coisa circula debaixo da mesa, há
muitos boatos, gente da polícia que fala não oficialmente” mas
isso “não exime os jornalistas de conduzirem as suas próprias
investigações”.
Se não há factos, “não
se pode inventá-los”, frisa o advogado. E não há desculpa para
os ingleses citarem os jornais portugueses se estes invocavam fontes
anónimas ou pouco credíveis. Por exemplo, quando o
Daily Express reproduziu um rumor, a que fez alusão um antigo agente
da Polícia Judiciária na RTP, de que Kate e Gerry McCann estariam
envolvidos num esquema de “troca de casais” (swinging), Teixeira
da Mota questiona a relevância de divulgar questões de intimidade.
“Se é mentira, é difamação; se é verdade será devassa da vida
privada, e em Portugal isso é crime, o que poderá não ser o caso
na Grã-Bretanha.”
Satchwell, por seu turno,
observa que os McCann “sempre foram vistos [na imprensa britânica]
como vítimas, e não há provas que sugiram o contrário. E foi por
isso que o grupo Express teve de pagar uma indemnização e pedir
desculpas”. O que os jornais
propriedade de Richard Desmond escreviam sobre os pais de Madeleine
foi entendido como uma campanha de calúnia, que foi mais além do
que “as críticas e o debate que se realizou no Reino Unido sobre a
responsabilidade de ambos terem deixado os seus filhos sozinhos” na
casa de férias.
Sobre o impacto que os
excepcionais pedidos de desculpa na primeira página terão para os
leitores e outros editores, Satchwell diz que “é mais um aviso de
como as leis antidifamação funcionam no Reino Unido. Se os media
não puderem fornecer provas directas que suportem o seu noticiário
ou comentários, o preço em termos de custas legais e danos são
elevados.” “Os leitores tirarão
as suas conclusões e alguns reconhecerão que os jornais pelo menos
admitiram os seus erros e pediram perdão pelas manchetes que
fizeram”, adiantou. “Desta vez não se pode dizer que as
desculpas não foram significativas. A lição que os jornalistas
devem aprender é a de que não se deve noticiar rumores sem
substância.”
Teixeira de Mota é mais
céptico. Acha que, tratando-se de tablóides, a sua pouca
credibilidade não será afectada. “Este tipo de publicações vive
do gossip [coscuvilhice] e do escândalo. O leitor, geralmente, quer
sangue mesmo que não seja verdadeiro. Teria sido diferente se isto
tivesse acontecido num jornal de referência.”
Vejamos então como um
jornal de referência e um tablóide trataram o mesmo tema, a 9 de
Outubro de 2007.
– David Brown e Patrick Foster, do diário The Times,
escreveram: “Vestígios do ADN
de Madeleine McCann recolhidos em dois apartamentos de férias
portugueses não provam que ela está morta. Apesar da falta de
provas conclusivas, os detectives ainda acreditam que foi justificado
declarar Kate e Gerry MacCann suspeitos oficiais no desaparecimento
da sua filha. (…) Testes levados a cabo pelo Serviço de Ciência
Forense em Birmingham não provam que a menina de 4 anos foi morta,
mas os resultados são considerados significativos.”
– A versão de Martin
Evans, do Daily Express, é muito diferente: “Provas forenses
cruciais ligam, alegadamente, os pais de Madeleine McCann ao seu
desaparecimento, insistiu ontem à noite uma fonte próxima do caso.
Os testes britânicos ao DNA indicam que a polícia portuguesa estava
certa ao declarar suspeitos Kate e Gerry McCann. A fonte também
rejeitou afirmações de que as provas encontradas no carro alugado
de ambos são ‘inconclusivas’. A extraordinária viragem na
investigação chocou os McCann que esperavam vir a ser em breve
ilibados do envolvimento no desaparecimento da sua filha.”
O Daily Express vende
cerca de 700 mil exemplares por dia e o Daily Star terá
aproximadamente 610 mil leitores, segundo a AFP. A indemnização que
aceitaram pagar, e que irá para o Fundo Find Madeleine, livrou-os de
uma multa ainda maior, que poderia ir, segundo a BBC, até quatro
milhões de libras.
Um jornal português,
ainda que já extinto (em Setembro de 2007), o Tal & Qual, tem
contra si um processo de difamação pela notícia de capa “PJ
acredita que os pais mataram Maddie”. Teixeira da Mota
considera esta “uma afirmação de prova praticamente impossível,
já que a PJ é uma instituição e nunca afirmou oficialmente o que
consta da manchete”. Por outro lado, “dificilmente responsáveis
da PJ ligados a investigação viriam a confirmar ter expresso essa
opinião”.
Quanto ao processo
Sarko-Nouvel Obs, o advogado admite que o jornalista poderia ter
evitado noticiar o alegado SMS “porque não era do interesse
público, embora também se possa questionar por que motivo o
Presidente francês “expôs a vida privada ao misturá-la com a
política”, quando deu a conhecer o seu romance com Carla Bruni
durante uma visita oficial a Jordânia. Ainda assim, Teixeira da
Mota repete que não vê “interesse público” na história de
Routier, até porque não é o que os leitores esperam de uma revista
como o Nouvel Observateur.
Quanto à decisão de
Sarko de encerrar a polémica, lembra que o [antigo] Presidente, em
queda de popularidade, “não estaria interessado em prolongar um
processo, que até poderia ganhar nos tribunais mas que dificilmente
lhe seria favorável em termos de opinião pública,” porque
continuaria a ser uma avaliação política e uma intrusão na sua
vida privada.
Outros arrependimentos
O pedido de desculpas do
grupo Express ao casal McCann é inédito por aparecer
simultaneamente nos quatro tablóides propriedade de Richard Desmond.
Mas há precedentes:
*Nos anos 1980, o jornal
The Sun pediu desculpas na primeira página à Rainha de Inglaterra
que as aceitou, por ter publicado antecipadamente o seu discurso de
Natal, e a Elton John, por alegações de que o cantor pagava
relações sexuais com rapazes.
* Em Maio de 2004, o
influente jornal norte-americano The New York Times pediu desculpas,
em editorial, aos seus leitores pelas notícias sobre as (não
existentes) armas de destruição maciça no Iraque. O jornal
confessou que a Administração de George W. Bush o exortara a
publicar “informações sem fundamento para justificar a guerra”,
e admitiu que a cobertura noticiosa “não foi rigorosa como deveria
ter sido”. No mesmo mês, em Londres, o Daily Mirror publicou um
pedido de desculpas na primeira página – Sorry… We were hoaxed –
por ter publicado fotografias manipuladas de soldados britânicos a
abusarem de um iraquiano. O jornal prometeu doar o dinheiro da venda
das fotos à caridade.
* Em Fevereiro de 2006,
os jornais da Arábia Saudita publicaram uma página inteira, em
árabe, com um pedido de desculpas do diário dinamarquês
Jyllands-Posten por este ter encomendado caricaturas de Maomé, uma
das quais com o profeta do Islão envergando um turbante em forma de
bomba.