Lex Humana, Petrópolis, v. 9, n. 2, p.
40-67 2017
© Universidade Católica de
Petrópolis, Petrópolis, Rio de Janeiro, Brasil
CRIME, NARRATIVA E DNA: OS DESAFIOS DA
PROVA DE DNA NO PROCESSO INQUISITORIAL
CRIME, NARRATIVE AND DNA: THE
CHALLENGES OF DNA EVIDENCE IN
INQUISITORIAL PROCEEDINGS
FILIPE SANTOS UNIVERSIDADE DE COIMBRA
Resumo:
A prova de DNA vem
conquistando um papel privilegiado na investigação criminal como
forma de identificação. Assente numa sólida base científica e na
expressão probabilística de resultados, a prova de DNA pode
proporcionar um grau de fiabilidade e certeza acima de outros
métodos de identificação forense. Porém, a exaltação de
um imaginário mediático do DNA como a derradeira prova para
condenar os verdadeiros culpados e ilibar os inocentes é passível
de limitar a necessária prudência no uso destas tecnologias
na investigação criminal, assumindo particulares desafios no
processo inquisitorial. Recorrendo aos arquivos judiciais de casos
criminais que ocorreram em Portugal e onde foram usadas
tecnologias de DNA, são exploradas várias dimensões e desafios
em torno da prova de DNA durante o inquérito criminal, o seu impacto
na construção e desenvolvimento da narrativa criminal, e a sua
preponderância na tomada de decisão judicial.
Abstract:
DNA evidence has been
gaining a privileged role in criminal investigation as a method of
identification. Grounded on a solid scientific basis and on
the probabilistic expression of results, DNA evidence may
provide a degree of reliability and certainty above other
forensic
methods of
identification. However, the exaltation of a mediatized
imaginary of DNA as the
ultimate evidence to
convict the real offenders and to acquit the innocent is likely to
constrain the necessary prudence in the use of these technologies for
criminal investigation, with particular challenges in inquisitorial
type proceedings. By analysing judicial records of criminal cases
that occurred in Portugal, I explore several dimensions and
challenges surrounding DNA evidence during criminal inquiry, its
impact on the construct
1
Introdução
Em
maio de 2007, uma criança inglesa chamada Madeleine McCann
desapareceu do apartamento de férias no Algarve enquanto os seus
pais jantavam com um grupo de amigos a alguns metros de distância.
Ao cabo de 4 meses de investigação, os vestígios biológicos de
Madeleine que, alegadamente, teriam sido encontrados num carro
alugado pelos pais um mês após o desaparecimento, converteram a
narrativa mediática acerca do sofrimento e desespero destes numa
acesa contenda acerca da prova de DNA e da eventual culpabilidade dos
pais no desaparecimento de Madeleine.
C'est
du roman, si des vestigios biologicos ont été trouvés, ils n'ont
pu être attribués à MMC précisément.
O
inquérito do caso que prendeu a atenção de milhões de pessoas por
todo o mundo viria a ser arquivado por falta de provas.
Manque
de preuve n'est pas la même chose que preuves insuffisantes...
A
partir da análise do caso “Madeleine McCann” e de outros que
ocorreram em Portugal entre1997 e 2007, este texto pretende analisar
o modo como as tecnologias de DNA1
Por
“tecnologias de DNA” pretende-se designar todo o conjunto de
métodos e produtos analíticos envolvidos na elaboração e
comparação de perfis de DNA (LYNCH; COLE, S. A.; et al., 2008). A
sigla DNA corresponde a DeoxyriboNucleic Acid que, em língua
portuguesa, tende a surgir traduzida por ADN (Ácido
DesoxirriboNucleico). Não obstante os diplomas legais portugueses
utilizarem a designação ADN, entende-se que a sigla não deverá
ser traduzida por ser a designação aprovada pela Sociedade
Internacional de Bioquímica(MACHADO; COSTA, 2012, p. 62)
vêm
sendo utilizadas no contexto da investigação criminal e as suas
consequências na eficácia e realização da justiça. Numa primeira
parte, são brevemente descritas algumas características das
tecnologias de DNA enquanto meio de identificação no contexto
forense, ponderando alguns dos desafios que se constituem no seu uso
como prova em tribunal. Na segunda parte, são expostas algumas
dimensões das interseções entre justiça, ciência e tecnologia no
contexto de um sistema de justiça com características
inquisitoriais, como é o caso de Portugal, tomando em consideração
os modos como a organização e interdependência funcional das
várias instituições e agentes contribuem para o desenrolar da
investigação criminal. Por fim, são apresentados e analisados
arquivos de processos criminais que ocorreram em Portugal.
Pretende-se sustentar o argumento de que a utilização das
tecnologias de DNA ao serviço da justiça é, em parte ou
significativamente, subordinada ao pré-estabelecimento de narrativas
criminais e aos elementos de prova que se pretende consolidar.
2
DNA, identificação, e os desafios da cientifização
(…)
3
Ciência forense num sistema de tipo inquisitorial – o caso de
Portugal
(...)
3.1
Prova, narrativa, e o processo “inquisitorial”
O
processo criminal de cariz inquisitorial é materializado num
conjunto mais ou menos extenso de documentos que circulam entre
vários atores e instituições (órgãos de polícia criminal,
Ministério Público, juízes de instrução criminal, advogados), e
que contêm registos de todos os elementos pertinentes para um
determinado caso. O processo constitui-se como “centro” de
acumulação (LATOUR, 1987)para o qual fluem todos os objetos
produzidos por inscrições dos múltiplos atores envolvidos na
investigação. Estes artefactos judiciários destinam-se
à transmissão de informação “à distância” e, ao longo da
rede que se estabelece, há elementos que se vão consolidando como
“factos”.
A
lógica discursiva dos documentos que compõem o processo tende a
tomar a forma daquilo que se pode designar por “narrativa”
criminal. A narrativa pode assumir múltiplas formas –lendas e
mitos, épicos, contos, notícias de jornal, etc. –, mas trata-se,
na sua essência, deuma
forma
de organização, estruturação, e compreensão da experiência
humana, que é construída de modo a comunicar a terceiros uma
sequência de eventos (AGUIAR E SILVA, 2012, p. 112–113).
Deste modo, o processo enquanto narrativa inclui componentes
elementares em torno de uma ação ou acontecimento, tais como uma
localização temporal e espacial, perfil e motivações das
personagens que intervêm na ação, causas que determinaram a ação,
modo e consequências.
Importa
clarificar que o termo “narrativa” é aqui empregue num sentido
amplo para explorar os sentidos e interpretações que são
atribuídos pelos vários intervenientes nas progressivas
tentativas de reconstituição dos acontecimentos. Ao mesmo
tempo, a expressão “narrativa criminal” transmite o
carácter provisório, mas também social e culturalmente
construído, do desenvolvimento da investigação criminal e da
interpretação dos indícios, sendo que a abordagem de qualquer
crime tende a partir de guiões cultural e profissionalmente
previamente estabelecidos (KRUSE, 2012). Perante um crime de cenário,
e a partir de uma noção mais ou menos vaga do tipo de crime que se
apresenta, são invocados os repertórios de saberes e práticas
profissionais que irão atuar como uma espécie de guião que se
começa a ler na última página e que irá ajudar à reconstrução
da situação inicial do local, dos atores presentes e ausentes, das
motivações e ações que se desenvolveram até ao desfecho
criminal. Neste sentido, Williams e Johnson (2007: 371)falam de um
“impulso central”, um ponto de partida, que conduz os
investigadores criminais no processo de “reconstrução” da
sequência de eventos de cada crime, recorrendo para tal à
interpretação de sinais de atividade e movimento na cena
de crime, à aplicação de reportórios de conhecimento acerca de
comportamentos criminais tipificados, bem como ao conhecimento
geral acerca de cada tipo de crime. Neste sentido, é
particularmente relevante assinalar que os significados da
prova de DNA tendem a ser construídos e interpretados em
função de uma narrativa central (LYNCH; COLE, S.; et
al., 2008; THOMPSON, 1996).
Em
suma, o processo de investigação de um crime envolve um
conhecimento aprofundado da natureza e características do crime e da
personalidade humana (BRAZ, 2010). Esse repertório de saberes,
pessoais e profissionais,será mobilizado na observação,
análise e avaliação de cada cenário criminal, assumindo
contornos narrativos, no sentido em que se procura veicular uma
compreensão intersubjetiva e reconstitutiva sobre “o que
aconteceu” naquela cena de crime em particular.
De
acordo com o Código de Processo Penal Português, durante a condução
do inquérito penal, os órgãos de polícia criminal (OPC) são
colocados na dependência funcional do Ministério Público. O
magistrado responsável pelo processo irá determinar e/ou
autorizar as diligências necessárias ao apuramento da “verdade”
dos factos. O modelo “inquisitorial” do processo penal, associado
ao “monopólio” de competências das perícias médico-legais e
forenses por parte de laboratórios estatais, configura e consolida
processos de isomorfização entre o direito e a ciência, na medida
em que a orientação e validação mútua por princípios de
imparcialidade, neutralidade e universalidade contribuem para a
construção de um edifício jurídico-pericial pouco suscetível a
influências externas que não possam ser integradas no
“código” do sistema judicial (LUHMANN, 2004).
4
Métodos e materiais
Os
dados apresentados neste texto resultam da análise dos processos
judiciais de cinco casos criminais que ocorreram em Portugal.
Os casos criminais foram selecionados mediante um duplo
critério: a sua ampla mediatização e a utilização de
tecnologias de DNA durante a respetiva investigação. Era também
imperativo que se encontrassem já arquivados, de modo a possibilitar
a consulta dos processos judiciais.
A
opção pela seleção de casos que foram alvo de ampla cobertura
mediática tem que ver com o facto de determinados casos criminais
serem eventos com potencial para perdurarem na memória coletiva e,
assim, constituírem referências nas representações públicas
acerca do crime e da justiça (INNES, 2004; MACHADO; SANTOS,
F., 2009, 2011), mas também no modo como os cidadãos
compreendem e aceitam a utilização das tecnologias de
DNA no combate ao crime (HINDMARSH, 2010). A mediatização de casos
criminais “extraordinários” em função de determinados fatores
de noticiabilidade (JEWKES, 2004) proporciona às audiências algumas
pistas para apreender as complexidades do sistema de justiça
criminal e dos próprios usos das tecnologias de combate ao crime
(BREWER; LEY, 2010). Os materiais recolhidos dos processos foram
estruturados e integrados em formato digital, tendo sido alvo de
análise seguindo os princípios da grounded theory (GLASER; STRAUSS,
1967; STRAUSS; CORBIN, 1990). Ou seja, o processo de análise
tem início na primeira abordagem ao processo e na seleção da
documentação relevante, sendo os materiais recolhidos sujeitos a
constante comparação, reflexão e codificação, consoante é
adquirida mais informação acerca dos contextos, ações e
interações, condições causais ou consequências relacionadas com
o fenómeno sob estudo
(STRAUSS;
CORBIN, 1990). A conformidade aos critérios definidos –utilização
de tecnologias de DNA, ampla mediatização (Para
a operacionalização deste critério entendeu-se que um caso seria
amplamente mediatizado se se verificasse a produção mais ou menos
regular de artigos noticiosos ao longo de pelo menos um ano) e
trânsito em julgado –resultou na seleção de um total de
cinco casos, designados nos termos como ficaram publicamente
conhecidos: “Meia Culpa” (1997), “Tó Jó” (1999), “Joana”
(2004), “Serial Killer de Santa Comba Dão” (2006) e “Madeleine
McCann” (2007). Os contornos de cada crime são sintetizados
abaixo, para mais adiante se abordar aspetos específicos dos
modos como a prova de DNA foi empregue.
(...)
O
desaparecimento de Madeleine McCann terá sido um dos casos mais
mediatizados de sempre à escala global. Em maio de 2007, um casal de
cidadãos britânicos encontrava-se de férias num aldeamento
turístico na Praia da Luz, no Algarve, com os seus três filhos
(Madeleine de 3 anos, e os gémeos Sean e Amelie de 2 anos). Por
volta das 22 horas do dia 3 de maio, a mãe, Kate, alertou para o
desaparecimento da sua filha Madeleine do quarto onde dormia com os
seus irmãos. As crianças haviam ficado no apartamento enquanto os
pais jantavam com um grupo de amigos num restaurante do
aldeamento, revezando-se para verificar se as crianças
se encontravam bem. Ao cabo de vários meses de investigação em
torno de um suposto rapto, o uso de cães especialmente treinados
para detetar odores de sangue e cadáver levou a investigação a
colocar a hipótese de que Madeleine teria morrido e que o seu
cadáver fora oculto. O inquérito viria a ser arquivado a 21 de
julho de 2008 por falta de indícios de que os então arguidos
(Gerald McCann, Kate Healy e Robert Murat) tivessem cometido qualquer
crime. No caso Madeleine, tal como no caso Joana, não foram
encontrados até à data quaisquer indícios acerca da
localização da criança.
5 Desafios
da produção e interpretação da prova de DNA em cinco casos
criminais
Um
aspeto que distingue a prova de DNA relativamente a outros tipos de
prova forense é a complexidade da sua interpretação. Por exemplo,
se uma impressão digital é encontrada numa superfície, poderemos
presumir com alguma confiança que esta foi tocada por determinado
indivíduo. Pese embora o imaginário disseminado na cultura popular
de que o DNA seja muitas vezes prova definitiva de algo (LEY;
JANKOWSKI; BREWER, 2010), a sua fiabilidade e cientificidade
tornam mais difícil que intervenientes num processo judicial
possam avaliar criticamente os resultados de um relatório
pericial (MURPHY,
2007). Ao nível do inquérito criminal têm sido encetados
esforços no sentido de promover o uso eficiente das tecnologias de
DNA ao serviço da justiça. Um exemplo chega do Reino Unido, um
early user no domínio das tecnologias de DNA (WILLIAMS, 2010). Em
virtude do encerramento do Forensic Science Service e da abertura
ao mercado da provisão de serviços forenses, houve lugar à
tentativa de implementação de protocolos eficientes de uso
e interpretação de vestígios no contexto de investigações
criminais. Estes esforços surgem da necessidade de regular e
responsabilizar as relações entre consumidores (polícias) e
prestadores de serviços (laboratórios privados) (LAWLESS;
WILLIAMS, 2010). Lawless e Williams analisaram o chamado método CAI
(Case Assessment and Interpretation) para a avaliação e
interpretação de prova científica. Este método implica a
aplicação de uma estrutura bayesiana para a interpretação das
provas num determinado
caso
ao sistematizar a aplicação de probabilidades no confronto de
proposições hipotéticas de defesa e de acusação gerando razões
de verosimilhança (likelihood ratios) para assistir à tomada de
decisões por parte dos investigadores criminais.
As
proposições hipotéticas (ou perguntas que se devem colocar perante
as análises de determinados vestígios) são estruturadas em
três níveis hierárquicos que têm em conta as
circunstâncias do caso para poder gerar informação útil à
interpretação dos vestígios. O primeiro nível refere-se à
“origem” (source): por exemplo, se um cabelo é encontrado nas
roupas de um suspeito, calcula-se a probabilidade de pertencer à
vítima. O segundo nível designa “atividade” (activity) e coloca
questões do domínio da investigação: retomando o exemplo
anterior, pode-se ponderar se, pertencendo o cabelo à vítima,
como se justifica que tenha sido encontrado na roupa do
suspeito. O terceiro nível, crime, (offence) coloca questões mais
dirigidas ao domínio da decisão judicial: isto é, o confronto
entre a probabilidade de o cabelo ter ido parar à roupa do suspeito
por transferência casual e a probabilidade de ter sido transferido
em resultado de uma agressão violenta. Este tipo de protocolo
promove a isomorfização entredireito e a ciência, no sentido em
que, como constatam Lawless e Williams: “CAI promove uma forma de
ciência forense que converte o próprio processo de investigação
criminal numa investigação científica” (LAWLESS; WILLIAMS, 2010,
p. 744, tradução do autor).
Em
Portugal, conforme foi atrás referido, o juízo inerente à prova
pericial presume-se subtraído à livre apreciação do
julgador. Deste modo, quando o processo chega às mãos do
julgador, a prova de DNA vem já inserida numa narrativa criminal.
Quer isto dizer que a sua interpretação e integração
contextual surgem a montante do julgamento, sendo
estabelecidas pelos investigadores criminais com o suporte do
Ministério Publico.
(…)
5.4
O caso “Madeleine McCann”
O
caso do desaparecimento de uma criança de 3 anos, de nacionalidade
inglesa, na região portuguesa
do Algarve, causou um fenómeno mediático à escala global. O caso
teve abundantes pontos de fricção e controvérsia dos quais se
poderá destacar o facto de a investigação ter sido ser liderada
pelo mesmo inspector da Polícia Judiciária que havia conduzido a
investigação no caso “Joana”. Durante vários meses, a
investigação procurou pistas e suspeitos de um eventual rapto,
tendo chegado a deter um suspeito que havia demostrado
“comportamentos estranhos”.
Tal
como no caso do Serial Killer de Santa Comba Dão, Robert Murat, que
vivia nas proximidades do local onde a família McCann passava
férias, mostrou-se demasiadamente interessado e solícito ao
oferecer os seus serviços como tradutor e ao fazer perguntas acerca
das diligências que estariam a ser efetuadas.
Do
conjunto de casos analisados, este foi o que recorreu à colheita de
amostras biológicas
de
mais indivíduos, mais diligências de busca e apreensão e exames
periciais. Contudo, a cena de crime teria sido comprometida pela
presença de muitas pessoas no apartamento alugado pelos McCann. Em
finais de julho de 2007, e com o principal intuito de realizar buscas
à residência e às viaturas do principal suspeito, Robert Murat,
foi destacada uma equipa cinotécnica do Reino Unido, especializada
na deteção de odores de vestígios hemáticos e
cadavéricos. Os investigadores decidiram também usar os cães no
apartamento de férias dos McCann e no carro que haviam alugado após
o desaparecimento de Madeleine. Estas buscas levaram à recolha de
vestígios no carro alugado pelo casal McCann e no
apartamento onde passavam férias –diligências que foram
filmadas. A equipa de investigação começou então a especular que
o corpo da criança pudesse ter sido transportado após a sua morte
no apartamento.
Não
sendo possível efectuar recolha directa dos vestígios biológicos,
os materiais onde a equipa cinotécnica deu indicação positiva para
odor de cadáver e/ou sangue foram enviados para o Forensic Science
Service em Inglaterra, onde foram analisados através da técnica de
Low
Copy Number (também chamada Low Template DNA–LT-DNA)5.
Esta
técnica foi alvo de controvérsia na altura em que se desenrolava o
caso “Madeleine McCann”. Para mais detalhes
ver Lawless (2012).
A
4 de setembro de 2007, a polícia portuguesa recebeu uma comunicação
informal entre o laboratório que realizou as análises aos vestígios
do apartamento e do carro –o Forensic Science Service– e a
polícia de Leicester. O seu conteúdo abordava os resultados
obtidos e, apesar da informalidade, estava longe de ser
categórico. Apesar de uma das amostras ter revelado um
perfil compatível em alguns componentes com o de Madeleine,
dificilmente poderia ser interpretado –não só pela
complexidade inerente à técnica de Low Copy Number–, mas também
por causa das questões que levanta mesmo que se aceite que o dador
da amostra foi Madeleine. A mensagem reencaminhada do laboratório
inglês para a polícia de Leicester referia o seguinte:
What we need to consider, as scientists, is whether the match is genuine and legitimate (...) The individual components in Madeleine’s profile are not unique to her; it is the specific combination of 19 components that makes her profile unique above all others. Elements of Madeleine’s profile are also present within the profiles of many of the scientists here (...) It’s important to stress that 50% ofMadeleine’s profile will be shared with each parent (...) Therefore, we cannot answer the question: Is the match genuine or is it a chance match? (...) What questions will we never be able to answer with LCN DNA profiling? When was the DNA deposited? How was the DNA deposited? What body fluid(s) does the DNA originate from? Was a crime committed?(fls. 2618 do processo 201/07.0GALGS)6
A
mensagem de correio eletrónico (email) encontra-se nos autos
traduzida para português: “Aquilo que necessitamos
considerar, como peritos, é se a correspondência é genuína e
legítima (...) Os componentes individuais no perfil de Madeleine não
são únicos para ela; é a combinação específica dos 19
componentes que faz o seu perfil único acima de todos os outros. É
de acrescentar que estão presentes elementos do perfil de Madeleine
nos perfis de muitos peritos de laboratório aqui em Birmingham,
inclusivamente em mim. É importante sublinhar que 50% do perfil de
Madeleine será partilhado com cada progenitor (...) Assim, não nos
é possível responder à pergunta: a correspondência é genuína
ou é uma correspondência por acaso? (...) A que questões
nunca conseguiremos responder com a obtenção de perfis de
ADN via LCN? Quando foi o ADN depositado? Como foi o ADN
depositado? De que fluido(s) corporal(ais) é proveniente o ADN? Foi
cometido um crime?” (fls. 2622 do processo 201/07.0GALGS).
O
conteúdo deste email materializa o tipo de questões que deverão
estar presentes na interpretação de prova e que equacionam a origem
ou proveniência (source), atividade (activity) e crime (offence).
Conforme se pode constatar, o laboratório inglês
aconselha cautela na interpretação do perfil de DNA obtido. Porém,
a mãe e o pai de Madeleine foram constituídos arguidos e
inquiridos a 7 de setembro
de 2007. Kate McCann foi confrontada com um grande número de
questões face às quais manteve o seu direito, enquanto
arguida, e possivelmente aconselhada pelo advogado presente no
interrogatório, de não responder.
Algumas
dessas perguntas pediam explicações para o facto de os cães terem
sinalizado odores de sangue e cadáver em vários locais, e inclusive
nas suas roupas, mas também para os vestígios biológicos
recolhidos no carro e no apartamento, sendo afirmado que
teria sido recolhido o “ADN da Madeleine” (fls. 2560 do processo
201/07.0GALGS).
No entanto, esta era uma estratégia de risco que
apostava na concretização de um enredo não muito diferente do caso
“Joana”, em que a morte da criança é causada por familiares
próximos. A exibição das imagens da inspeção cinotécnica e o
confronto dos arguidos com a alegada existência do DNA de Madeleine
McCann no carro alugado, pode ter tido como propósito exercer uma
forma de pressão para suscitar uma confissão. Na sequência
dos interrogatórios, o casal McCann ficou sujeito a termo de
identidade e residência, tendo regressado a sua casa em
Leicester onde permaneceu até ao arquivamento do processo.
(...)
6
Conclusão
Ao
longo deste texto procurou-se descrever um contexto jurídico-legal,
científico e social
com
características particulares, embora estas possam não ser muito
dissimilares das existentes em outras jurisdições, onde o processo
criminal é conduzido pelo princípio acusatório, e onde as
tecnologias de DNA vêm sendo usadas com crescente relevância e
eficiência.
Começou
por se abordar algumascaracterísticas e especificidades do
DNA enquanto método
de identificação forense, nomeadamente a sua natureza de
classificação probabilística que se distingue da avaliação
binária requerida de outras disciplinas forenses, bem como o ideário
de objetividade
e neutralidade que lhe é atribuído em função da
projeção mediática da sua cientificidade e infalibilidade. A
organização e regime jurídico dos serviços de ciência forense em
Portugal acaba por reproduzir a noção de submissão simbólica do
direito à ciência que referia Boaventura de Sousa Santos (2000), no
sentido da adoção de um isomorfismo epistemológico por parte do
direito, embora o conhecimento adquirido por esta via seja limitado.
Não obstante os esforços para cientifização do trabalho policial,
no decurso do inquérito criminal, observa-se a possibilidade de
recurso a narrativas de enquadramento assentes na experiência
e saberes profissionais que são suscetíveis de enviesar a
interpretação e contextualização da prova de DNA.
A
síntese e os excertos dos casos criminais analisados no presente
texto tiveram como propósito ilustrar os diferentes modos e
consequências dos usos das tecnologias de DNA ao serviço da
investigação criminal, bem como os seus eventuais impactos
em função de um enquadramento narrativo. Tendo em mente
o intervalo temporal que situa o próprio desenvolvimento
e aplicação das tecnologias de DNA, importa observar que estas
podem ser determinantes na condução do inquérito e na produção
de prova, conforme foi assinalado no caso do “Serial Killer de
Santa Comba Dão”. Porém, são as instâncias em que um dado
sentido narrativo se sobrepõe à produção e interpretação de
evidência que se tornam mais preocupantes e atentatórias dos
direitos individuais, como se constatou no exemplo do caso “Joana”.
Em suma, argumentamos que a assunção da neutralidade de
todos os intervenientes, judiciários ou laboratoriais, no
decurso do processo criminal, e da observância do princípio
acusatório, não deverá ser motivo para que os intervenientes não
procurem ativamente assegurar esse estatuto de neutralidade.
Designadamente, ao prevenir os enviesamentos cognitivos
passíveis de ocorrer quando se parte de uma narrativa para a
produção de prova.